sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Contos da Estrada: Sobre o Menino

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Sentou-se no banco daquela igreja, mas não teve coragem de se ajoelhar. Era sempre assim. Ajoelhar-se era um tormento psicológico. Não conseguia e ponto. Um gato dormia logo ali no banco da frente. Curvou-se, pegou aquela bola de pelos e acariciou por um longo tempo. Sentiu os músculos, a respiração e assistiu-o lamber-se inteiro quando se cansou dos carinhos daquelas mãos desconhecidas.  Ambos se levantaram daquele banco e saíram cada um pro seu lado. Nenhum dos dois havia rezado.
Ela ainda sentia uma leve dor que vinha da cintura e ia até metade de suas coxas. Intensificava quando tentava se agachar. Pensou que sairia ilesa daquela falsa santa casa, sem resquício nenhum do que havia feito. Mas crime nenhum é perfeito. A dor era tamanha nos primeiros dias que precisou pedir abrigo naquela comunidade antes de seguir a estrada rumo ao nada. Um animado boiadeiro levava frutas, canja, pão e água fresca até o seu quarto, instalado dentro da casa do patriarca da vila. A senhora que a havia ajudado desde o minuto em que chegara naquele lugar passava de hora em hora pela sua janela, perguntava: ‘tudo bem fia?’ e sumia. Ela afirmava com a cabeça e voltava seus olhos àquela pequena TV no canto do dormitório. 'Em quarenta dias tudo volta ao normal.' E era assim que conseguia alívio para os seus pensamentos antes de adormecer.
Ao final do terceiro dia o sangramento havia parado, a canja do boiadeiro animado fizera efeito e a necessidade de sair daquele lugar aumentava. Estava encantada com a praticidade e a sabedoria interiorana, onde senhoras semianalfabetas preparavam seus próprios remédios e soluções ‘Pra tudo, fia, menos pra morte’. Seu amigo boiadeiro a levou até a autoestrada e aguardou gentilmente até um carro parar e oferecer carona pra ela. ‘Até um dia, moça, Deus há de lhe perdoar. ’ ‘Amém, Seu Zé. ’

***
O riacho era raso, o que tornou o banho ainda mais convidativo. O jovem seminarista que cedera um espaço na sua velha caminhonete preferira ficar sentado embaixo de uma árvore enquanto ela se refrescava um pouco. Ele descascava uma laranja e tentava não olhar pra aquela forasteira, que a pele era tão branca que refletia como um diamante rosado em meio aquelas pedras escuras. Ela percebia seu olhar, porém diante de tamanha fragilidade do momento, preferira ignorar qualquer instante que remetesse a carne. A voz daquela senhora dizendo ‘espera quarenta dias, fia’ não saía de sua cabeça. A única coisa que sua mente enfraquecida guardara daquele momento tão único.
Já no carro, a estrada continuava deserta e os olhares daqueles dois seres se cruzavam nas poucas vezes que algum caronista surgia em meio aquela imensidão. Ele não parou pra mais ninguém. Ele queria apenas ela ali do lado dele, silenciosa e lacrimejante. ‘Você já ouviu alguma confissão?’ ‘Não, nem posso ainda. ’ ‘Não importa, preciso me confessar. ’
A confissão durou 57 km. Ele, em silêncio, ouviu tudo que ela tinha pra dizer. Não sabia o que dizer diante de sua narrativa. Não sabia até onde tudo aquilo era verdade. Mas sentia que precisava ouvir tudo em silêncio, e qualquer interrupção quebraria talvez, o único momento de alívio daquela criatura a quem ele dispusera o seu dia.

A confissão terminou em cima de uma ponte. Ela pediu que ele parasse pra que pudesse fotografar o pôr-do-sol. Respirou fundo, ajoelhou-se, pediu perdão e agradeceu.
A caminhonete seguiu caminho. Ele fez o que ela pediu ao final do quinquagésimo sétimo quilômetro. 'Deixe-me aqui e não olhe pra trás.'

Naquela ponte ficou uma mochila, uma máquina fotográfica e um par de chinelos.
Nenhum dos dois nunca mais foram vistos.
Seu Zé sabe, mas não conta.

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