Vi o Outono chegar ao Jardim Botânico de Curitiba, vi o Sol
se pôr no Inverno dentro de uma ilha no meio do oceano no sul do Brasil, senti
as cachoeiras geladas na Primavera de Goiás, estava em Brasília no dia das
eleições mais concorridas do país, e não imaginava o que faria do meu Verão.
O Universo lacaniano inatingível. Ainda buscando o lugar que
vi na foto. Ainda percorrendo cidades históricas espalhadas por aí, ainda
voltando ao século XVIII pra tentar encontrar algo que tenho medo de achar.
Dessa vez, depois de tantas irrealidades, inverdades e surrealidades, decidi
percorrer o real. Nesse caso, a Estrada Real.Comecei por Paraty há dois anos. Duas visitas, duas mochiladas e pronto. Com a certeza de que não era lá, sonhei durante um tempo com a continuação dessa estrada. E foi do nada, no meio de uma noite de insônia que novamente planejei de verdade essa viagem. A última de 2014, provavelmente a última em território nacional, pra fechar com o que existe de mais real e triste: o ouro.
Tudo mudou. Dessa vez trouxe gente comigo. Não são mais anônimos que deixei pela estrada sem olhar pra trás. Dessa vez eu saí de lá olhando pra trás e querendo um dia voltar. De verdade. Dessa vez eu não comprei passagens de volta. Fui comprando as de ida, uma atrás da outra. Fui com duas camisetas, shorts, chinelos e um punhado de coragem na mochila. No corpo um agasalho, botas de trilha, calças e todo o desejo do mundo. Fui leve, sem dinheiro e cheia de sonhos. Voltei quando dentro do meu bolso me sobraram dois cigarros, um molho de chaves, algumas moedas e um bilhete único pra ser usado apenas em São Paulo.
Houve um tempo em que eu lia Kerouac. Houve um tempo em que convivia com pessoas que viviam como Kerouac. Havia chegado a minha vez. Uma estrada longa, uma mochila leve, dois goles de conhaque de vez em quando pra me aquecer no meio da noite fria (vocês sabem o que é o frio de uma estrada vazia a noite?), e muitos pedidos de um copo d’água a estranhos amáveis que te observam no meio da poeira que levanta no meio das estradas.
Corri alguns perigos, desses que normalmente acontecem com viajantes individuais. Mas anjos existem e sempre aparecem, pegam-me pelo braço, me oferecem café fresco e um pedaço de bolo. Sentei em tantas varandas, tantos quintais e tantas calçadas, dormi em tantas camas e em tantos abraços, refleti e filosofei com tantas pessoas. Discuti tantos assuntos e aprendi coisas que nunca pensei aprender nessa vida. Falei mais inglês que português, subi mais que desci. Ladeiras, montanhas, minas de extração, cachoeiras dentro de cavernas. Campos vastos, mata fechada, pessoas de Barcelona e de Divinópolis. Almas queridas da Holanda, de Santa Catarina, das Vilas Formosa e Madalena. Cantores, artistas, escritores, lutadores alemães, músicos, professores, goodvibes, geólogos, fashionistas, hipsters, copeiros, balconistas, advogados, bêbados, mendigos e prostitutas. Conheci até um islandês que acreditava em Deus e uma torcedora do Ipatinga.
A gentileza do povo de Minas. Isso é divino. Dentro do
ônibus, começando essa jornada, entendi o que era doação. Não dessas de montar
sacolinha pra criança apenas no Natal, pra aliviar uma consciência de um ano
todo voltado ao materialismo. Doação de verdade, simples e pura. Ao ficar sem
bateria no celular, me desesperei ao saber que o ônibus em que estava viajando
não tinha tomadas. Uma moça me ofereceu o carregador dela, desses portáteis que
vêm com 30% de carga. Estava quase aceitando, quando vi a simplicidade do
celular dela, e o fato de que ela também estava sem bateria alguma. Entendi que
é fácil dar aquilo que está sobrando. Mas ver alguém doando aquilo que também
não tinha – seja lá o que for comida, roupa, bateria de celular, foi o que me
deu a certeza de que estava indo pra um lugar especial. Você há de concordar.
No mundo moderno você dá sua alma pro diabo, mas não dá carga de bateria de
celular.

Agradeço profundamente todos que duvidaram que o meu estilo
de vida não me levaria a nada. Trouxe-me aqui e me levará pra mais longe ainda.
“Por toda vida, uai”.
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